Há um mundo inteiro guardado em malas de maternidade. Listas de “essenciais”, planos de parto pensados e preocupados, playlists para o momento em que a vida vai mudar irreversivelmente. Sonhamos a gravidez e o parto, muitas vezes, como um filme bem iluminado: a barriga redonda, a mão que aperta, o choro que inaugura uma família, a viagem de carro, a chegada a casa. É a narrativa que, se tivermos essa sorte, herdamos e que, tantas vezes, ninguém nos ensinou a desidealizar.
Nos livros e blogues sobre maternidade, há sempre a famosa nota de advertência: “Atenção, cada gravidez é única, há muitas situações que podem não corresponder a esta realidade e está tudo bem!” Entende-se que esta carinhosa e precavida nota não seja estendida, pois não é bom marketing dizer que, por vezes, o “está tudo bem” quer dizer que a vida acontece no seu lado menos fotogénico: a ecografia silenciosa, o sangue que chega cedo demais, a notícia dita em voz baixa num corredor cheio…sem falar nos partos e pós partos onde os momentos escritos a lápis no coração, para poder apagar e reescrever porque “já se sabe que há coisas que não se controlam”, passam a ser escritos e realizados em cicatrizes (dentro e fora), a tinta permanente, dignas de um filme de terror com o qual nem os medos sonharam. Tantos, os medos que as mulheres já levam na mala, mesmo quando a gravidez avança: o medo de ficar sozinha numa urgência sobrelotada, de ser transferida no último minuto porque “não há equipa”, de não ser ouvida quanto à dor, de um parto que deixa marcas no corpo e na alma, de não haver anestesista, de ser tratada como uma complicação e não como uma pessoa. Medos que cresceram com as histórias das amigas e com a crise que insiste em não poupar a obstetrícia no SNS – equipas curtas, turnos longos, corredores cheios, salas a contar minutos.
Onde havia futuro, instala-se um presente a preto e branco.
A Joana é chamada pelo número, “23”. A enfermeira pergunta a data da última menstruação sem olhar, os dedos a correr no computador. Deita-se na marquesa. O médico entra a correr, cheira a urgência e a café velho. Duas pessoas fitam o ecrã a murmurar umas com as outras enquanto o olhar atento da Joana procura o sinal de qualquer coisa concreta. Ouve mais alto “Vamos ser práticos, isto é um aborto”. O “aborto”, sem artigo e sem sujeito, como se não houvesse ninguém na frase. E a Joana pensa “é o Tomás”. Na eternidade surreal das frases sucintas que se seguem a Joana faz perguntas e contém as lágrimas – não parece haver tempo para chorar ali, é melhor esperar por sair. E como a Joana muitas outras mulheres.
O cérebro apaixona-se pelo futuro antes do corpo o confirmar. Por isso, mesmo que “seja só um embrião”, não foi “só”. Foi um nome a meio, um abraço visto de passagem, uma frase dita sem se saber ainda a quem exatamente: “quando nasceres…”, “a mãe está aqui.”
A perda gestacional é um luto inteiro, com todas as suas estações – choque, raiva, culpa, vazio, e esse regressar a casa onde tudo lembra quem não veio. E acabasse aí a lista.
A culpa feminina gosta de argumentos perfeitos. Diz: “o meu corpo falhou” que é um bom eufemismo para “eu falhei, “não descansei o suficiente”, “não devia ter tomado aquele café”, “não devia ter dito em voz alta”. Procura uma lógica, um fio, uma esperança de poder controlar alguma coisa quando o controlo foi perdido. O corpo, entretanto, tenta curar-se: contrai, sangra, desregula para regular, dissolve promessas tecidas em hormonas e sintomas lembrete. A recuperação é dupla e desencontrada: quando o corpo começa a restaurar, a alma ainda corre pelos corredores, a perguntar: “e agora, a quem entrego o colo e amor desmedido que ficou?” A desorientação de quem de repente saiu de um comboio em andamento e numa estação errada.
Ao lado, muitas vezes, está um parceiro ou uma parceira sem mapa. A vontade de ajudar tropeça numa sensação de impotência, pois nada parece encaixar na forma deste vazio. Alguns tentam consertar com frases, “vai correr tudo bem da próxima”, outros com logística – marcar consultas, arrumar exames, entregar aquele boletim que agora já não serve – e outros com silêncio. Todos, porém, aprendem que há dores que não se curam, cuidam-se.
Nestes momentos, há uma entrada com senha própria: “preciso que fiques”, “não preciso de solução, preciso de presença”, “pergunta-me se quero um abraço”.
Escrevo isto e sinto, ao mesmo tempo, a empatia pelo peso do outro lado da história da Joana. Os profissionais exaustos, a girar pratos: partos a acontecer, emergências que não avisam, turnos que não acabam, salários que não seduzem, colegas que emigraram, chefias a fazer malabarismo. Quando se trata toda a gente, o coração aprende truques de sobrevivência: “ficar técnico”, “falar rápido”, “não abrir a porta onde mora a empatia, porque lá dentro está o dilúvio”. Não cabe tudo em oito horas que são vinte e quatro. E eles, são também, sujeito. São também, só e tanto, pessoas.
A frieza não é, quase nunca, maldade. É como uma carapaça. A carapaça protege quem cuida, mas fere quem é cuidado. E o sistema pede a carapaça todos os dias.
Como reescrever, então, esta história, sem ceder à fantasia de que vai ficar tudo perfeito, mas também sem nos conformarmos com a dureza como norma?
No íntimo de quem perde, autorizar rituais. Dar um nome, escrever uma carta, acender uma vela, guardar a ecografia ou deixá-la noutro lugar… O que for necessário. O luto precisa de gesto. Fazer acordos com a culpa: ouvi-la, agradecer-lhe a tentativa de controlo, e devolvê-la ao acaso biológico. Cuidar do corpo como casa que acolhe: alimentação simples, descanso, movimento suave, acompanhamento clínico atento e psicoterapia quando houver espaço para pôr linguagem e colo no que ficou por dizer. Convidar o parceiro/a ou amigos para tarefas claras como fazer o telefonema difícil, levar à consulta, ficar na noite em que o corpo vai “despedir-se”.
Na relação a dois, dois lutos diferentes não são desamor: um chora com lágrimas, o outro com silêncio; ambos amam. Combinar sinais, como uma palavra que significa “abraça”; outra que significa “preciso de ar”. Criar pequenos lugares de encontro, um passeio sem perguntas, um chá antes de dormir, uns minutos por dia para nomear o que doeu e o que ajudou.
Na sala clínica, linguagem mínima de humanidade. Dizer o nome da pessoa, repetir o nome do bebé se existir, validar a dor (“lamento muito”), explicar cada passo (“o que vamos fazer agora é…”), perguntar consentimento mesmo no “apenas técnico”. Tempo protegido para más notícias, dez minutos sem interrupções. Dez minutos mudam muita coisa. Protocolos de luto perinatal, como um folheto simples com o que esperar do corpo, sinais de alerta, contactos úteis, grupos de entreajuda; uma chamada de follow-up em 48/72 horas.
Espaços de respiro para as equipas, supervisão, intervisão, rotação que reconheça que comunicar perdas consome de dentro para fora. Cuidar de quem cuida é cuidado ao quadrado.
No sistema que nos abriga (ou devia), continuidade de cuidados, sempre que possível, uma profissional de referência que atravesse a gravidez, a perda e o depois. Escalas feitas a pensar em pessoas, não em máquinas, equipas suficientes para que a empatia não seja luxo. Portas abertas ao acompanhante e à informação clara, menos segredos técnicos, mais tradução humana. Parcerias com redes comunitárias (psicologia perinatal, associações de pais em luto, apoio espiritual de quem o desejar), para que o hospital não seja último e único lugar.
Talvez, assim, possamos dar lugar a dois bebés que sempre existiram: o bebé idealizado, que precisa de ser despedido com respeito, e o bebé real, que, quando chega, encontra pais menos sós, menos culpados, mais preparados para o improviso da vida. E, quando não chega, que quem ficou encontre um país que sabe ficar ao lado: um profissional que olha, um parceiro que pergunta “posso estar contigo nisto?”, um sistema que, mesmo cansado, não esquece que cada “vinte e três” é uma história com nome próprio.
Desidealizar não é desistir do sonho: é abrir espaço para a realidade – frágil, teimosa, às vezes cruel – e, ainda assim, lá no fundo, com gentileza e um terreno fértil para a esperança. O amor cabe aqui. A compaixão, também. E, com sorte e trabalho, um dia, uma maternidade onde não seja preciso escolher entre eficiência e humanidade.
– Por Ana Fidalgo