Nos dias que correm, o acto de conhecer alguém na intenção de criar uma história de amor, ou mais ainda, uma história de vida, trazem um paradoxo curioso. Temos mais ferramentas ao nosso dispor do que nunca – aplicações de encontros, redes sociais, testes de personalidade – e, no entanto, muitos sentem-se mais perdidos e desconectados que nunca. Como mencionou recentemente Esther Perel, o processo de encontrar o amor começou a assemelhar-se a um processo de recrutamento – um rigoroso sistema de seleção onde os potenciais parceiros se encontram para avaliação como candidatos a um emprego.
Então, será que ao mesmo tempo que procuramos profundidade, estamos a praticar a evasão? Em simultâneo, ansiamos por intimidade enquanto nos protegemos dela?
Vamos explorar este modo “CV do Amor”. Parece que o namoro se transformou num sistema orientado para a eficiência. Construímos listas – algumas conscientes, outras inconscientes (que, aqui entre nós, têm uma força invisível superpotente) – das características que procuramos num parceiro/a. Esta pessoa está carreira certa? Partilha as minhas preferências de estilo de vida? É emocionalmente inteligente, engraçada, ambiciosa e, ao mesmo tempo, sem bagagens emocionais do passado? Como se estivéssemos a selecionar um candidato a um emprego, comparamos, avaliamos e, com facilidade, rejeitamos.
O problema é que o amor não é uma candidatura de emprego. A conexão não é um conjunto fixo de critérios. A pessoa que pode enriquecer mais a tua vida pode não ser aquela que preenche todos os requisitos na tua lista, mas sim aquela que expande o teu sentido de identidade de formas inesperadas. No entanto, estamos condicionados a procurar certezas, a minimizar riscos e, ao fazê-lo, fechamos portas às conexões que poderiam surpreender-nos pela positiva.
Vivemos na era da “performance da perfeição”. As redes sociais adicionam outra camada de complexidade às relações. Já não estamos apenas à procura de um parceiro – estamos a fazer curadoria de uma identidade. A psicologia do autoaperfeiçoamento, agora mercantilizada e reapresentada em pequenas doses de sabedoria, alimenta, muitas vezes, expectativas irrealistas sobre como deve ser uma relação saudável. Encontramos inúmeras mensagens sobre autoestima, limites, sinais de alerta (as famosas red flags que tanto ouvimos entre quatro paredes) e “saber o nosso valor”, levando-nos muitas vezes a hiper-analisar cada encontro. Não há absolutamente nada de errado, muito pelo contrário, em ter padrões e saber que influências queremos aceitar na nossa vida! É muito importante conhecermo-nos bem e distinguir os nossos negociáveis e não negociáveis numa relação e ter uma noção equilibrada de limites, o que é um processo sempre único e pessoal.
Mas não podemos esquecer-nos de que, o amor, na sua essência, é desorganizado. Exige tolerância para as imperfeições – as nossas e as dos outros. Num mundo que recompensa o perfeccionismo, ainda estamos a permitir espaço para a realidade bela e imperfeita da intimidade
No centro deste namoro moderno está também um medo crescente da vulnerabilidade e das medidas de autoproteção. Desenvolvemos formas sofisticadas de nos protegermos, com nomes trendy – ghosting, slow fading, breadcrumbing – táticas que nos permitem afastarmo-nos sem enfrentar o desconforto. Este mecanismo de autoproteção, embora compreensível, torna cada vez mais difícil formar laços autênticos.
A verdadeira intimidade exige risco. Requer que nos apresentemos com as nossas imperfeições, incertezas e medos. Mas muitos de nós foram condicionados a acreditar que a vulnerabilidade é uma fraqueza e não a base da confiança e da conexão. Como, então, podemos criar relações que sejam reais, enriquecedoras e seguras? Criar confiança exige um envolvimento ativo com aquilo que se desconhece. É um verbo praticado na primeira pessoa e não um conceito que se trabalha antes da acção.
E as famosas Apps? Uma ferramenta que, tal como um martelo, pode construir ou destruir. Conectar ou afastar. As aplicações de encontros revolucionaram o amor, mas também colocam um dilema. Estão a expandir as nossas possibilidades ou a reduzir-nos a mercadorias num mercado infinito? Por um lado, oferecem um acesso sem precedentes a potenciais parceiros. Por outro, promovem uma cultura de descartabilidade—onde a próxima pessoa está sempre a um deslize de distância.
A chave é a intencionalidade. Estamos a usar estas ferramentas para nos conectarmos verdadeiramente ou apenas a envolver-nos numa busca interminável por opções melhores? Estamos a criar espaço para a descoberta genuína ou a filtrar potenciais parceiros antes mesmo de lhes darmos uma oportunidade de nos surpreenderem?
Além disto, tendo a Inteligência Artificial a ajudar na criação de perfis de namoro, devemos perguntar-nos: estamos a terceirizar a nossa autenticidade? Desde chatbots que escrevem mensagens a algoritmos que otimizam as nossas fotos, a tecnologia está a moldar não só como nos apresentamos, mas também como interagimos com os outros. Se um perfil cuidadosamente construído não corresponder à realidade de quem somos, o que acontece quando nos encontramos pessoalmente? O risco é que nos apaixonemos por uma ideia e não por uma pessoa, e, sinceramente, não é que necessitemos de ajuda para fazer isso mesmo! A ato de nos apaixonarmos envolve já em si a construção dessa ideia e fantasia que se vai tornando em realidade à medida que conhecemos realmente o outro.
“Ok Ana, isto é tudo muito bonito, muito material de reflexão… Então e como é que faço se quero conhecer alguém e criar uma história?”
Com apps ou sem apps, em ambientes mais ou menos movimentados, aqui estão algumas formas de fazer a tua parte para abrir novas possibilidades:
- Alarga a tua lista – A atração nem sempre é previsível. Permite-te curiosidade em vez de aderir religiosamente a uma checklist. Isto não significa abandonar os teus princípios, padrões e não-negociáveis! Apenas sair da rigidez e questionar se é mesmo um must have (tem de ter) ou um better have (seria bom ter)…
- Abraça a vulnerabilidade – A conexão floresce quando ousamos ser vistos. Partilha um pouco mais do que normalmente partilharias; assume pequenos riscos emocionais.
- Está presente – A magia da atração muitas vezes reside em interações no mundo real. Inicia conversas em cafés, livrarias ou eventos…Os sítios onde circulas. Experimenta novos sítios também! O mundo digital é útil, mas não subestimes o poder da química presencial.
- Dá o primeiro passo – Se és tímido/a, começa com pequenos gestos. Um sorriso, uma pergunta, um elogio – estas ações abrem a porta para a conexão sem pressão. Ás vezes o menos é mais – conversar sobre aquilo que se tem à frente, ou mesmo admitir que é difícil para ti dar o primeiro passo, mas que achaste a pessoa interessante e pareceu valer a pena! Vulnerabilidade é coragem e coragem é sexy.
- Reformula a rejeição – Nem todos os encontros levarão ao amor, e isso é mais normal do que o contrário. Há beleza e interesses para todos os gostos e William James lembra-nos de um aspeto muito importante: “Quando duas pessoas se encontram há, na verdade, seis pessoas presentes: cada pessoa como se vê a si mesma, cada pessoa como a outra a vê e cada pessoa como realmente é.” São muitos filtros juntos! E cada experiência é um passo para uma maior autoconsciência e resiliência.
No fim de contas, o amor não é sobre eficiência. Não é uma fórmula perfeita ou uma lista otimizada. É sobre curiosidade, sobre permitir espaço para o inesperado, sobre entrar no desconhecido com abertura em vez de e medo ao mesmo tempo. A questão não é se encontraste a pessoa “perfeita”, mas se estás disposto/a a participar na bela e imprevisível dança da conexão. Assim, num mundo de escolhas infinitas, narrativas perfeccionistas e distanciamento digital, é preciso ousar amar de forma imperfeita. Não esquecer o amor próprio, mas lembrar que ele germina da força de nos permitirmos ser amados. É aí que a verdadeira magia acontece. E se tudo isto já é imprevisível e caótico, a viagem ao teu amor próprio não precisa de ser. Não estão sós, estamos aqui para “desnovelar” os caminhos que ainda parecem demasiado escuros.
Por Ana Fidalgo